sábado, 11 de janeiro de 2014

Via Crúcis do Blues da Piedade



Lembra-se do dia que a encontrei jogada em um meio fio qualquer, com a maquiagem borrada de tanto chorar, as roupas rasgadas e sujas, o corpo coberto de machucados, a boca retorcida e a alma esfarrapada? Lembra-se? Você inventou um nome – Mel - e disse pra eu ir cuidar da minha vida, já que você não precisava da porra da ajuda de um merdinha como eu. Mas mesmo assim eu te ajudei, lembra? Arranquei-a do chão e a levei para minha casa, não tinha ninguém em casa, cuidei da merda de todos os seus ferimentos, limpei sua boca, enxuguei seu corpo ferido e a coloquei para dormir – só um pouco.

Quando acordou você pagou pela minha atenção com seu corpo que eu já tinha visto nu. Ofereceu-me seu sexo gasto e eu aceitei; aceitei porque era irresistível demais deixá-la ir sem saber de onde vinha seu nome inventado. Não era doce. Nunca fora. Seu sexo não era bom, longe disso. Você só sabia fingir gemidos e empurrar-me cada vez mais para dentro do seu corpo cansado. Você queria meu mel, desculpe o trocadilho infame, mas é isso. Você queria para poder sair de cabeça erguida sem dever nada a um estranho que a acolheu sem intenção de fodê-la. Mas eu fodi. Fodi o máximo que pude, de todas as formas possíveis e imagináveis. Você gosta de sexo, não é Mel? Não só do ato de corpo contra corpo, mas da força e volúpia de seduzir, de se fazer de fraca para aos poucos dominar, de enroscar as pernas ao redor do meu torso em não deixar ser comandada. Mel – você não é doce. Era pulsante, como nenhuma outra fora. Era mandona e fazia disso sua vida. A via crúcis era seu corpo oferecido demais, banal demais, algumas manchas no ombro direito, para disfarçar. Olhos verdes de lente de contato e cabelo alisados com um produto qualquer. Seu corpo era seu templo, seu mundo de fingimento e aceitação.

Naquele dia você me depravou, querida. Fez-me viciado na falsa força do seu sexo ruim, um pedinte por todo aquele sentimento falsário de felicidade. Você é feliz, Mel? Você sabe o que é felicidade? Acho que não, porque você só sabe foder, fumar e cheirar. Ah, e beber. Antes de sair levou o resto da cachaça mais barata que eu tinha. Levou-me também, sem saber. Fez-me como tatuagem em seu corpo maculado por si própria marcou-me em suas coxas anacrônicas que se abrem para qualquer um que pode oferecer uma nota de cinquenta – mas também aceita menos, dependendo do dia. Não a procurei. Não diretamente. Fui a outras, a várias. Todo meu salário medíocre era para encontrar sua essência em outras. Encontrar seu doce em outro mel. Comecei a fumar – canelados principalmente, mas não da mesma marca que os seus, os mais vagabundos possíveis, para combinar com essa decadência que agora parece intrínseca ao meu ser. A fiz em poesia. A fiz em retratos, também. Não a tive, nem por um segundo encontrei dentro de outras meninas mais vendidas e mais promiscuas o que você tinha – gosto. Ainda ama entregar-se a outro como uma putinha barata, Mel? Ainda amanhece jogada no chão, drogada e prostituída para que Christiane F. nenhuma coloque defeito? O que tem feito quando não encontra homem nenhum para dominar? O que a consola nesses dias? Corre para os braços de um ex-namorado qualquer, cheira uma carreira e fode sem cobrar, desperdiçando um dia de trabalho? No final ele diz que a quer de volta, que pode a fazer feliz e largar as drogas. Mas você não quer redenção. Você só quer ser você mesma, de camisa longa e saia curta, de bate-estaca em uma esquina imunda, chiclete de menta entre os dentes amarelados, uma curta peruca loira e maquiagem para disfarçar a dor. Porque dói, mas ainda é bom. Porque é bom, mas ainda dói.

O que você quer além de você mesma, Mel?

E quando a vi corri para encontrá-la – estava longe, mas sei que me viu. Viu-me ir ao seu encontro, de olheiras na cara e cigarro entre os dedos, quase chorando de felicidade (falsa!) de saber que poderia tê-la novamente. Você não quis. Reclamou e entrou no carro de um grupo de babacas. Foi bom para você? Aguentou os cinco a noite inteira, querida? Um brinde, então! Um brinde a você e a vida de merda que construiu! Um brinde a sua decadência feliz (até morrer!) ao seu nariz escorrendo por causa do pó, as feridas na pele, as doenças e aos vícios que nunca serão virtudes. Um brinde a mim também, Mel! A primeira carreira que cheirei foi para você! A primeira heroína também foi você! E tantas outras que passaram pelos meus lençóis e levavam um pouco do meu dinheiro e de mim – foram tantas que até cheguei a esquecer quem era: tornei-me um arremedo adocicado pelo seu mel. 


E agora me vendo também – é só pagar. Você ficaria feliz em saber quanto pagam por mim nas mesmas esquinas que você usou. Espero que um dia me encontre em um meio fio qualquer, surrado e drogado, corpo coberto de machucados, boca retorcida e a alma esfarrapada? Lembra-se? Eu até inventei um outro nome: mas esse você só descobrirá se seguir a via crúcis da alma que reneguei em detrimento ao corpo seu.


FIM

Este conto foi feito para o Céu Literário. Este mês o tema eleito foi "Perversões", tendo por primeiro texto "Amor de Réptil", Do Hui, podendo ser encontrado aqui e o segundo, também do Hui, pode ser lido aqui. O texto do Vit, com o mesmo tema está aqui. O projeto, aberto a todos os escritores blogueiros que se interessarem pode ser encontrado aquiaqui ou aqui

Um comentário:

  1. Ah mel.. ah, personagem não nomeado. Como posso me apaixonar por tais farrapos de personagem? As vezes queria entender a mim mesmo. Logo eu, que corro da dor e do escuro, me mantendo sobre a penumbra em tortura, me encantei com este retrato de auto flagelação. Deve ser o efeito Lucas Souza, desconheço gosto de possa resistir a qualquer amontoado de palavras deste que, a despeito de sua não autonomeação, tenho por grande artista.

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