quarta-feira, 18 de junho de 2014

Da Musa Que Se É Princesa

Subverto os versos; desfaço as poesias: livro-me de mim para falar de ti, Princesa forjada em gelo, quintessência de meu complexo Édipo que só envelhece. Alelofobia de minhas fábulas onde as canções do bardo refolegam na lama do meu quintal inundado pelos olhos teus. Imperfeita em tua perfeição, tresloucada, moira e predestinada – nunca minha. Passeio pelos bosques fitando tuas ninfas nuas e despudoradas, esperando teu raiar na madrugada da minha (des)alegria. Enquanto o dia não nasce se faz na que adora dançar e entre os véus das Mil E Uma Noites faz de mim poeta em uma modernidade descabida. Tece o que é minha vida e desfaz o que é minha rima; tece o que é seu destino, me deixa de fora, não me contamina. Porque se é Princesa um dia Rainha Será – escreve em Runas seu bailar, de gelo faz teu cetro e não me chama para dançar: é poesia demais essa minh'alma de quimera travestida.

Se Princesa é Musa, também é a que desperta desejo, com Amor aos seus pés, maravilhado. Se até ele você encanta, o que faz comigo Princesa? Me deixa mais que intrigado! Dos ossos teus faço um tamborilar ritmado, porque teus olhos lamaceiam minha alma e despertam minhas canções. Posso ser teu bardo e fazê-la em dança? Dou um nome belo para tua canção! Runa do Gelo, assim se chamaria, feita para aquela que apodreceu minha modernidade em mitologias de uma tresloucada devastação.

Tinge as madeixas em um tom escuro do céu – retira do meu olhar o azul e deixa-me escuridão: diz que são esses os olhos que um poeta anacrônico a ti deveria ter. E quebra novamente meus versos com tuas anquilhas esfarrapadas, já que teu Reino está demais Para Lá e tu está demais Para Aqui, então é somente sobrevivente nessa contra-dança. Mas ainda dança, Runa? Ainda baila em teu ritmo tamborilado com os próprios ossos? Veste em força uma camisa etérea – treslouca-se e retorna em um eterno regresso para uma vida que nunca tivera, mas não aceita chá nenhum e nem o oferece, aliás, não se corrompe por pouco ópio – sempre precisa de mais e por ele sempre pede.

Coma-me e beba-me, Runa. Devore-me, já que nunca seria eu capaz de decifrar teu enigma de Coração Gélido e sensibilidade demais para se fazer insensível. Surripia-me do meu tempo e me faz suplicante no teu e talvez ofereça-me poucas moedas para que eu consiga um conhaque barato em meio a esse inverno do seu contemplar. Já que de nobre Capitão fui rebaixado a pedinte: quem seria eu para navegar na imensidão do Teu Olhar?

sábado, 11 de janeiro de 2014

Via Crúcis do Blues da Piedade



Lembra-se do dia que a encontrei jogada em um meio fio qualquer, com a maquiagem borrada de tanto chorar, as roupas rasgadas e sujas, o corpo coberto de machucados, a boca retorcida e a alma esfarrapada? Lembra-se? Você inventou um nome – Mel - e disse pra eu ir cuidar da minha vida, já que você não precisava da porra da ajuda de um merdinha como eu. Mas mesmo assim eu te ajudei, lembra? Arranquei-a do chão e a levei para minha casa, não tinha ninguém em casa, cuidei da merda de todos os seus ferimentos, limpei sua boca, enxuguei seu corpo ferido e a coloquei para dormir – só um pouco.

Quando acordou você pagou pela minha atenção com seu corpo que eu já tinha visto nu. Ofereceu-me seu sexo gasto e eu aceitei; aceitei porque era irresistível demais deixá-la ir sem saber de onde vinha seu nome inventado. Não era doce. Nunca fora. Seu sexo não era bom, longe disso. Você só sabia fingir gemidos e empurrar-me cada vez mais para dentro do seu corpo cansado. Você queria meu mel, desculpe o trocadilho infame, mas é isso. Você queria para poder sair de cabeça erguida sem dever nada a um estranho que a acolheu sem intenção de fodê-la. Mas eu fodi. Fodi o máximo que pude, de todas as formas possíveis e imagináveis. Você gosta de sexo, não é Mel? Não só do ato de corpo contra corpo, mas da força e volúpia de seduzir, de se fazer de fraca para aos poucos dominar, de enroscar as pernas ao redor do meu torso em não deixar ser comandada. Mel – você não é doce. Era pulsante, como nenhuma outra fora. Era mandona e fazia disso sua vida. A via crúcis era seu corpo oferecido demais, banal demais, algumas manchas no ombro direito, para disfarçar. Olhos verdes de lente de contato e cabelo alisados com um produto qualquer. Seu corpo era seu templo, seu mundo de fingimento e aceitação.

Naquele dia você me depravou, querida. Fez-me viciado na falsa força do seu sexo ruim, um pedinte por todo aquele sentimento falsário de felicidade. Você é feliz, Mel? Você sabe o que é felicidade? Acho que não, porque você só sabe foder, fumar e cheirar. Ah, e beber. Antes de sair levou o resto da cachaça mais barata que eu tinha. Levou-me também, sem saber. Fez-me como tatuagem em seu corpo maculado por si própria marcou-me em suas coxas anacrônicas que se abrem para qualquer um que pode oferecer uma nota de cinquenta – mas também aceita menos, dependendo do dia. Não a procurei. Não diretamente. Fui a outras, a várias. Todo meu salário medíocre era para encontrar sua essência em outras. Encontrar seu doce em outro mel. Comecei a fumar – canelados principalmente, mas não da mesma marca que os seus, os mais vagabundos possíveis, para combinar com essa decadência que agora parece intrínseca ao meu ser. A fiz em poesia. A fiz em retratos, também. Não a tive, nem por um segundo encontrei dentro de outras meninas mais vendidas e mais promiscuas o que você tinha – gosto. Ainda ama entregar-se a outro como uma putinha barata, Mel? Ainda amanhece jogada no chão, drogada e prostituída para que Christiane F. nenhuma coloque defeito? O que tem feito quando não encontra homem nenhum para dominar? O que a consola nesses dias? Corre para os braços de um ex-namorado qualquer, cheira uma carreira e fode sem cobrar, desperdiçando um dia de trabalho? No final ele diz que a quer de volta, que pode a fazer feliz e largar as drogas. Mas você não quer redenção. Você só quer ser você mesma, de camisa longa e saia curta, de bate-estaca em uma esquina imunda, chiclete de menta entre os dentes amarelados, uma curta peruca loira e maquiagem para disfarçar a dor. Porque dói, mas ainda é bom. Porque é bom, mas ainda dói.

O que você quer além de você mesma, Mel?

E quando a vi corri para encontrá-la – estava longe, mas sei que me viu. Viu-me ir ao seu encontro, de olheiras na cara e cigarro entre os dedos, quase chorando de felicidade (falsa!) de saber que poderia tê-la novamente. Você não quis. Reclamou e entrou no carro de um grupo de babacas. Foi bom para você? Aguentou os cinco a noite inteira, querida? Um brinde, então! Um brinde a você e a vida de merda que construiu! Um brinde a sua decadência feliz (até morrer!) ao seu nariz escorrendo por causa do pó, as feridas na pele, as doenças e aos vícios que nunca serão virtudes. Um brinde a mim também, Mel! A primeira carreira que cheirei foi para você! A primeira heroína também foi você! E tantas outras que passaram pelos meus lençóis e levavam um pouco do meu dinheiro e de mim – foram tantas que até cheguei a esquecer quem era: tornei-me um arremedo adocicado pelo seu mel. 


E agora me vendo também – é só pagar. Você ficaria feliz em saber quanto pagam por mim nas mesmas esquinas que você usou. Espero que um dia me encontre em um meio fio qualquer, surrado e drogado, corpo coberto de machucados, boca retorcida e a alma esfarrapada? Lembra-se? Eu até inventei um outro nome: mas esse você só descobrirá se seguir a via crúcis da alma que reneguei em detrimento ao corpo seu.


FIM

Este conto foi feito para o Céu Literário. Este mês o tema eleito foi "Perversões", tendo por primeiro texto "Amor de Réptil", Do Hui, podendo ser encontrado aqui e o segundo, também do Hui, pode ser lido aqui. O texto do Vit, com o mesmo tema está aqui. O projeto, aberto a todos os escritores blogueiros que se interessarem pode ser encontrado aquiaqui ou aqui