Nota: Texto em
parceria com a Érica Prado, ou seja, ele não é só meu, só está sendo postado
aqui porque ainda não temos um blog fixo para esses textos, mas teremos. Ela é
a Juliete e eu o Humbert, às vezes vice-versa. Enfim, quem curtir comenta.
Visconde
[HUMBERT]
Restou
somente o sabugo, Juliete.
Fiquei
assim jogado, desamparado por você que só sabe ir embora e me deixar no
abandono na minha própria falta de serventia. Porque sou somente um sabugo,
Juliete. Um Visconde sem valor e inteligência – sem nobreza, sem amor, sem céu:
sem glória.
Restou-me,
Juliete.
Restou
o que você não quis abraçar com seus braços sufocantes. Desse nosso amor
(amamos?) sobrou à espiga seca e putrefada, jogada em um beco qualquer, ao
relento, ao tempo, sendo chutada pelos transeuntes que no fim fazem a mesma
coisa que você: descartam. Pois há quem diga que o mundo é feio de movimento,
eu digo que ele é feito de despedidas – abandonar a infância, a adolescência,
os sonhos e a própria vida.
Mas
dos meus lábios você não ouvirá nem o mais simples adeus – não sei deixá-la.
Meu
adeus é também ficar.
[JULIETE]
Como
eu poderia, Humbert? Como eu poderia não esgotá-lo até o sabugo? Ouça – é o
vento que bate no teu reino, sacudindo teus milharais. Mas eles são seus? Acho
que você é o Humbert errado. Acho... Ouça! – é de você que vem o vento que
afaga meus cabelos. É de você! O vento que me afaga, que me refresca, que me
esfria, que me arrepia. O que eu vou querer de um sabugo, Humbert? Mas ele é
você? Acho que você é o Visconde errado.
Acho
que está tudo errado, Humbert, está tudo errado com a gente, mas eu não sei
dizer o quê! Não fui eu que nos esgotei, Humbert, acho que o espantalho não
funcionou, o espantalho não espantou os corvos – eles nos devoraram, nos
devoraram e diziam “nunca mais”. Eles estão errados ou nós não seremos nunca
mais os mesmos de antes? Não seremos nunca mais as crianças que roubavam doces
nos jantares de família e se escondiam na copa das árvores e liam O Pequeno
Príncipe e treinavam ortografia com troncos de árvores e facas furtadas e
que... e que... que mais Humbert? Que mais nos foi devorado?
[HUMBERT]
Nem
liga Juliete.
Ignore
o vento e a desesperança: só os corvos importam. Não os espanto; eu gosto
quando eles devoram. Tenho-os como amigos, mesmo que eles machuquem mais do que
você, mesmo que eles sejam somente tatuagens na minha pele que você não procura
mais no cinza do nosso quarto cinza – na lama do nosso caos, do nosso
desarrumado organizado pela nossa preferência e pelos dedos ágeis de Johnny.
É isso
que dizem que é se sentir bela metade....? Ah, sinto-me assim desde que nasci,
como se tivessem me arrancado algo para moldar você. Sou fruto, você é a
semente. Floresca, Juliete! Cresça pelas gramíneas do meu milharal morto porque
eu como espantalho sou mais inútil que escritor – um escritor que odeia
palavras e um espantalho que sorri aos corvos.
Dê
milho aos corvos ou pérolas aos porcos, não importa, o desperdício é o mesmo.
E o
desperdício sou eu ainda tentar viver fora de você.
[JULIETE]
Não
se preocupe, Humbert – eu não ligo. Há, por acaso, um belo mais belo que o belo
do bico de um corvo a arrancar todas as suas palhas de espantalho? Deixe que o
corvo lhe retalhe, ele puxa sua pele em câmera lenta, ele devora minhas
entranhas em câmera rápida, ele na verdade somos nós, então por que usar a
terceira pessoa? Poe quê? Oh,
Humbert, consegue domar o meu sadismo? Devora-me. Pedacinho por pedacinho,
devora-me e deixe só o sabugo. É só o sabugo que importa, é do sabugo que veio
o Visconde, e é do sabugo que veio você, que é o Visconde errado e é o Humbert
errado. E se fosse o certo eu nem lhe dirigiria o olhar. Mas eu dirijo, de
soslaio, tão a troco de nada que nada que sigo minha vida e te deixo aí para
ser devorado, porque meu espantalho não conseguiu te proteger.
Eu
não vou dizer que não te salvo porque não posso. Eu não vou dizer que não te
salvo porque não quero. Eu não sei por que não te salvo, mas eu não te salvo,
Humbert.
[HUMBERT]
Você
se lembra de que existe algo seu que vive no meu limiar? Algo que me consome
aos poucos me devora tal Caetano. Tal os corvos devoram meu corpo de espantalho
que não sabe espantar. Scarecrow. O
assustador de corvos é quem se assusta, na verdade. Não com o seu sadismo, não
com a sua maneira de me deixar a mercê de meus próprios fantasmas – que no
fundo são aqueles que viviam em você. Assusto-me com a crueldade em que permito
mutilar-me. Marco-me para a eternidade com as chagas do Nosso Senhor Pecador de
Nós Mesmos.
Sou
santo em matar-me em nome do nosso amor que nunca existiu? Sou demônio por
gostar de gostar sentir dor. Não. Vai. Passar. Dói, sempre vai doer. Porque os
corvos no fundo não querem atacar o milharal – eles só querem o espantalho. Só
querem rasgar a palha – e você sabe disso mais do que ninguém, Juliete.
Você
também é corvo, assim como eu.
Junte-se
assim nessa festa de autoflagelação e vamos esquecer que somos os sabugos
largados ao chão, sem importância e utilidade. Já fomos milho, hoje não nos
resta nem os bagaços. Já fomos nós, hoje somos somente você. Então dance comigo
querida, dance enquanto seu mundo é caos, meu mundo é caos, mas o caos ainda é
ordem! Dance nossa marcha funebre de quartos cinzas e batida constante enquanto
o violão acompanha a voz rouca e a TV só está ligada para analisarmos a
fotografia do nosso filme em preto-branco-e-eu-não-sei-dançar-com-você.
Nem o
sabugo restou.
[JULIETE]
Corvos.
Que importam os corvos? Que importamos nós? Eu sou um passarinho preto num
jardim com florzinhas. Vamos ler a bíblia, Humbert? Talvez sejamos salvos – só
assim.
Mas
não quero deixar o sabugo. Deixar o sabugo é admitir que falhei. Porque o que
quero de você está nas suas entranhas, está no fundo profundíssimo, daqueles
que não se alcança sem antes retalhar cada pedaço do que o cobre, porque cada
fragmento de tecido seria capaz de ocultar, então cada fragmento de tecido deve
ser eliminado. Esse sabugo esgotado e exposto é você, Humbert? Ou sou eu? Não
sei mais a diferença. Acho que cheguei (ou chegamos? Ou só você chegou) ao
ponto em que nada fica muito distinto, como você não se distinguir de mim e não
se distinguir de nós e não nos distinguirmos de corvos e não sabermos
distinguir corvos de espantalhos. Quem devora? Quem é devorado? As vírgulas
fugiram no primeiro bater de asas. A sanidade, a lógica, a cronologia, tudo,
tudo. Nenhuma dimensão restou para contar estória (assim, com ‘e’, porque
história com ‘h’ não interessa, história com ‘h’ nunca é verdade).
A
verdade é a pior das mentiras, Humbert. E nosso amor é a pior das verdades.
[HUMBERT]
E
nossas mentiras o mundo já engoliu.
FIM
Nota final: Oi pessoas, esse texto foi escrito para o Céu Literário, uma
comunidade, blog e página no facebook que visa a divulgação e a interação entre
novos autores. O tema desse mês é o milho, então já que estamos com milho,
vamos com ele. Segue abaixo os links para texto e blog de outros autores que
escreveram até agora esse mês.
Huirian Suzin, do Universo Auxiliar:
Ouro de Palha
(http://universoauxiliar.blogspot.com.br/2013/05/ouro-de-palha.html) e Amor à
Vinagrete (http://universoauxiliar.blogspot.com.br/2013/06/amor-vinagrete.html)
Amanda Botelho, do Um Singelo Mundo Irreal:
O apanhador (http://umsingelomundoirreal.blogspot.com.br/2013/06/o-apanhador.html)
Grupo: https://www.facebook.com/groups/452854318095161/
Página:https://www.facebook.com/CeuLiterario
Blog: http://ceuliterario.blogspot.com.br/